sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

A moça.

Ouvi falar de uma moça inteligente e bonita, que à primeira vista nem aparenta ser tão inteligente, e nem tão bela assim... As pessoas se questionam, e não sabem o que é que essa moça tem, pra ser deste modo, do jeito que ela é. Andei perguntando, observando por ai, deduzindo por aqui, a fim de entender o que é que essa tal moça tem.
Ela tem medo. Ela tem dúvidas. Ela tem rancor. Ela tem medo, dúvidas e rancor. Medo do medo, dúvida a respeito das dúvidas, rancor de ter rancor.
Todos os dias ela acorda, se olha nos espelho e se pergunta: “– Onde é que eu estou errando?”. O espelho a olha de volta e diz: “Errando estou eu que é onde?”
(...) Essa moça tem medo de ser o que ela é...
Essa moça de olhos cansados, e mesmo assim brilhantes e negros, dorme e acorda com comichão no meio do peito. Um não-sei-oquê que a impede de fechar os olhos e sorrir. Unidos. Mas não. Ou ela fecha os olhos, ou os mantém abertos e então mostra os dentes, sempre atenta ao mundo ao seu redor, mas nunca os dois juntos.
Mas medo de quê?
Você se pergunta, todo curioso.
Essa moça tem medo de ser o que ela é. Porquanto nos meus estudos, descobri que ela é pura intensidade, instabilidade, entrega, força e prontidão. E quando batemos isso num imenso liquidificador, se a coisa não funcionar direito, teremos uma gororoba salgada pela frustração e choque.  E ah, ela já se chocou bastante. Contra paredes de indiferença, marés de desprezo e muros de dissabor. Frustrou-se quando botou intensidade onde não havia nem razão de ser. Frustrou-se quando a instabilidade emergia toda vez que percebia que algo estava errado, indo do céu ao inferno dentro de si, quando se entregou e recebeu devolução. Frustrou-se quando percebeu que ser forte e pronta pra tudo não garante reciprocidade e reconhecimento.
Foi aí que o medo nasceu, no terreno de um coração chocado, regado pela frustração. Primeiro de ser o que ela é, e segundo de tentar mudar essa essência e não conseguir. Ela tem medo. Medo do medo nunca ir embora, e medo de ter que aprender a viver com o medo. Eu acho que medo é a primeira coisa que você sente quando sente que ser você mesmo parece errado.
Eu olho pra essa moça de voz marcante, mente fértil, e humor negro e penso: “minha linda, saia dessa, você é tão ‘tudo-de-bom’, há uma imensidão de novos caminhos a seguir...” e sou interrompido por seu suspiro que me diz “mas, e se... ?”. Ela tem dúvidas.
Duvida do que pensa, do que lhe dizem, do que sente e principalmente do que aparenta ser certo. Duvida do padeiro, do professor da academia, do elogio de um colega, do “me deixa cuidar de você” que ouve de fulano, do que seu coração lhe diz, do que seus pais lhe dizem, dos que não lhe dizem nada. Ela tem dúvidas sobre o futuro, tem dúvidas sobre como lidar com os problemas e tem dúvidas sobre ter dúvidas. E andei notando que talvez esta seja a sua maior fraqueza. Por muito duvidar ela só entende o que quer, e muda isso com a freqüência que sua mente autoriza. E por causa dessa mesma dúvida, ela acaba sendo de vontade fraca porque muda no que acredita, e confunde-se sobre como agir. Ela não mostra isso com freqüência, mas eu já percebi que duvida também – e bastante – de si mesma. A moça de andar seguro cambaleia por dentro. Tropica, mas não cai.
Certa feita estava eu a observar essa morena de boca carnuda, medrosa e imprecisa, quando descobri o rancor que mora dentro dela. E te asseguro: não foi por querer. E digo que não foi, porque dei uma olhada no passado dessa moça.
Havia um tempo em que desculpas pedidas eram desculpas aceitas e não se falava mais no assunto. Eu vi essa menina ser ferida, e após perdoar, conseguir esquecer-se do que lhe magoara. E eu vi tantas mágoas esquecidas que contar me pareceu maldoso. Não sei bem quando a transição aconteceu, mas numa noite chuvosa ela disse “você já fez isso antes”. E foi quando a gana de recordar os desgostos surgiu. Nasceu alguém hostil.
E nós sabemos que na hostilidade não há justiça, e talvez isso explique a ausência de tolerância de acatar erros cometidos uma vez só por quem a rodeia. É que se foi a primeira vez de algum indivíduo, na certa haveria de ser a milésima de outrem.  Daí uma nuvem pesa no coração da garota bonita, e ela testemunha aquela frase que diz “recordar é viver”.
                Antes fosse apenas a mania de rejeitar o que lhe fere... Eu notei o rancor que ela tem de si mesma. A culpa por achar que a culpa é dela, que podia ser alguém melhor, que devia ter feito diferente, que não foi boa o bastante. É quando o rancor lhe sobe a cabeça, logo quando acorda que ela pensa aquilo que eu já lhes contei, “Onde é que eu estou errando?”. E como não obtém respostas, fica com medo de ser o que é.
Não sei o que dizer à moça, que ela já não saiba. E sei que ela não é feita apenas disso. Na verdade preciso dizer que fiquei encantado com tanta disposição de ajudar os outros e ser útil. Ficaria mais, se não soubesse ser esse o modo dela não se sentir sem valor. E não me desapontaria quando descobri que ela pensa que só não é sozinha por ser assim.  Gostei também quando vi que nada do que lhe aconteceu de ruim parece dominar ou existir quando ela ama. Mas confesso que quis segura-la em meus braços quando a vi abortar amores, muitas vezes, espontaneamente, mesmo com tanto esforço e medicação pra manter a semente adorada dentro dela.
Moça, não desiste não.
Moça, eu sei que você tem seus motivos, mas eu quero te dizer que observei você tanto tempo e presenciei que quando você sorri, mesmo petrificada por tanto medo, isso ilumina quem está com você. Você contagia, sabe? Tenta lembrar disso.
Vi que mesmo duvidando, você arrisca. Vi que mesmo com raiva, você não dá as costas. E eu desejo que enquanto a segurança, a certeza e a paz não sejam a parte dominante da sua balança, que você possa continuar capaz de amar, de intensificar e de não desistir. Porque isso tem sido raro no mundo, me entende? Ah moça... Calma ai, vai embora não, deixa eu te falar mais...
Nunca mais vi.
Foi dessa moça que ouvi falar, uma que fala tudo que quer, usa batom vermelho e adora inglês. Canta no chuveiro, canta no quarto, canta o tempo todo. Esbarra em tudo, e é um destrambelho ambulante. Que almeja ser médica, que sabe preservar amizades, que gosta de morar só. Que joga vídeo game, malha, come, dorme, brinca e sempre tem uma piada irônica pra soltar. Que vê malícia onde não existe, e inocência onde há sagacidade. Que brilha, que apaga, que transborda.
Quando me falaram dela, pensei: não é possível que ela abrigue tanto medo, dúvidas e rancor quanto me contaram.
 Fui lá, dei a cara à tapa, a observei e só posso dizer que ela é tudo isso junto e embaralhado mesmo.
Como ela consegue? Daí vocês vão ter que perguntar a ela.